Só há uma coisa pior do que morrer. É ter dor de dentes. Passei
uma noite desgraçada, de olho arregalado. Só pensava num amanhecer que nunca
mais chegava. Devo ter adormecido por breves instantes, porque me lembro da
vaga e etérea imagem de um dentista rodeado de uma aura celestial, sorriso
tilintante e de broca na mão. Acordei de madrugada com o meu filho mais velho
no meio da cama e assim me deixei ficar com ele, sem que a dor me abandonasse
por tempo suficiente para conseguir dormir. Pouco depois raiava o sol.
Fui à página do consultório do meu dentista para me
certificar do horário de abertura. 9h. Olhei para o relógio. Faltavam 7 minutos
e meio. Doía-me tudo. Engoli meia dúzia de analgésicos. Sentia o rosto pulsar a
cada inspiração. Os ponteiros do relógio batiam a cada latejar inflamado de dor
que me irradiava da boca e alastrava-se pela garganta, pelo ouvido e pela
cabeça. Acho que até o dedo mindinho do pé direito me doía. Pensar era
doloroso. Atar um cordel ao dente, agarrá-lo a uma maçaneta da porta e fechá-la
com força já fora uma hipótese mais remota. 9h01. Peguei no telefone e liguei.
O telefone tocou. Uma, duas vezes… – Por favor atende! Seria
feriado? O Natal é em dezembro, não é? - Três vezes. Quando atendeu após o
quarto toque e uma voz feminina monocórdica me disse que só havia consultas na
última semana de setembro, morri por dentro três vezes. De certeza que não lhe
doía dente nenhum. Uma lagrimazinha espreitou no canto do olho. Não ia
aguentar. A morte mil vezes! “Espere, não consigo arranjar vaga com o seu
dentista, mas o Dr. X pode atendê-la hoje às 18h”, disse ela de súbito. Hoje. A
palavra mais bonita do mundo. “Sim, claro.” Se me dissesse que a senhora que lá
ia limpar os vidros estava livre para me arrancar um dente ou dois com a chave
de fendas do marido desempregado eu aceitava na hora sem pensar duas vezes.
Agradeci-lhe 20 vezes e tomei mais meia dúzia de analgésicos.
O resto do dia foi cirurgicamente cronometrado. As dores
eram cada vez mais intensas e estava tão cansada que nem tinha forças para me
queixar com as devidas interjeições dramáticas. Questionei várias vezes a
necessidade divina de atribuir dentes aos humanos para depois os encher de
buracos quando esses humanos até lavavam os dentes religiosamente três vezes ao
dia, usavam fio dental e ainda bochechavam uma mistela verde antes de deitar. Sim,
essa era eu.
Mas bem, pouco antes das 18h, e mais meia dúzia de analgésicos
depois, lá apareci eu no consultório com cara de pedinte. Fui convidada a
entrar pouco depois. Depois de um raio-x, o dentista disse que tinha de desvitalizar.
Levantou a seringa da anestesia no ar e eu desejei aquele líquido milagroso
mais do que alguma vez desejei o que quer que fosse na vida. Até mais do que a Bimby.
Momentos depois a dor desaparecera. Não fosse pela vergonha e dava um abraço ao
homem. Depois de me abrir a boca de forma desajeitada e de me babar algumas
vezes durante o processo, lá começaram os trabalhos manuais. “Está tudo bem?” perguntava ele, de
vez em quando. “Mmm, mmm”, balbuciava eu enquanto ele me furava de um lado, a
assistente me aspirava a boca do outro e enquanto isso ia imaginando uma das
cenas do filme “O Dentista” que eu nunca tinha conseguido ver até ao fim.
“Desculpe, foi um nervo.” Eu sei! Eu senti! Ele e a
assistente às vezes falavam como se eu não estivesse presente. “20, Dr.?” “Não,
penso que 19 será suficiente.” Que será que me iam fazer 19 vezes? Medo. Até podia
perguntar, mas tinha a boca ocupada. A tarefa parecia interminável. Mexe ali,
mexe acolá. Enfia objeto comprido e brilhante nº 1, enfia objeto compridoe barulhento nº 2 e lá continuava eu sentada na cadeira, tesa e de punhos
cerrados - apercebi-me eu a determinada altura. Tentei relaxar as mãos e
estendi-as por cima das pernas, mas penso que o resultado não me fez parecer
mais descontraída. “Está tudo bem?” Acenei um sim silencioso com os olhos. Sentia
a saliva juntar-se, mas era difícil engolir com tanto instrumento e mãos dentro
da boca deformada. Cerca de 40 minutos depois a provação tinha terminado.
Quando me sentei na cadeira e o dentista se pôs a falar comigo descontraidamente
pensei: “A vida é tão mais bonita quando não nos dói um dente.” E é mesmo. Tudo
ganhou outra cor. O segredo da felicidade é esse. Não ter dores de dentes.
Oh amiga... Como eu te percebo.
ResponderEliminarÉ a pior dor que me pode dar. Prefiro parir um filho.
Estou solidária ctg 😊